sexta-feira, 4 de maio de 2007

Cartas IV



Sibila: descobri finalmente tudo aquilo de que preciso para comunicar consigo. Acho que daqui em diante será mais fácil trocarmos as nossas impressões acerca dos respectivos mundos, como lhes chama...
Há uma coisa que devo esclarecer: eu não morri nunca. Aliás, vou já dizer-lhe: se há aspecto desagradável, aqui por estas dimensões, é o facto de sermos "imortais". Quero dizer, aqui não temos tempo. Somos tudo o que somos sempre a cada instante, se bem que instante não é conceito nosso mas vosso.
Agora, repare na dificuldade que ambos teremos em nos compreender... Mas agarrei a tentativa e cá estou, de certo modo, consigo.
É difícil explicar mas a imortalidade é bastante enfadonha, sobretudo por estar tudo presente em cada instante. Não há nada para recordar nem nada para projectar. Se soubesse como a invejo!
Quanto às artérias...Estranho! Nelas circula o sangue... Mas isso deve constituir realmente situação bastante precária. Parece que a vossa vida depende sobremaneira desse sistema de "tubos" contorcidos no vosso interior.
Quanto a mim, saberá alguma vez de que "massa" sou feito? Bem queria encontrar as palavras certas (essas vossas preciosidades!) para lhe descrever o meu organismo, mas deparo-me com tremendas dificuldades. Ando à procura de uma outra forma de comunicação que possa, neste caso, ser mais eficaz do que as palavras. Será que tem alguma ideia acerca disso? Alguma sugestão que consiga fazer-me? Fico à espera, até porque ainda não descobri o modo de o fazer, embora saiba que a solução está comigo, pois, como lhe disse, temos e somos tudo o que temos e somos em cada instante. O que acontece muitas vezes é não estarmos conscientes da totalidade, pois como poderá supôr, é algo extremamente avassalador: estarmos repletos de tudo. E se existe algum sofrimento por aqui, consiste precisamente nisso.
Pergunta-me sobre o "mal". Se existe por aqui... Repare: está tudo misturado, o mal e o bem. Não fazemos distinções. Embora não tenha ainda a certeza de ter entendido o que quer dizer com estes termos, julgo não andar longe do seu significado temporal, por aí. O mal e o bem devem distinguir-se talvez em virtude do vosso universo submetido à causalidade. Logo, considerando consequências de certos actos (causas) e seus efeitos, o mal distinguir-se-á do bem e vice-versa.
Mas...por aqui, isolados da relação causa-efeito, tudo consiste num aglomerado de factos que, de certo modo, lutam para se diferenciarem. Pode dizer-se que essa é a força motriz de muito do que existe no meu universo. Da indiferenciação à diferenciação, jamais realidade. E creio que por aí, é precisamente o inverso o que sucede. A expressão mais próxima que posso utilizar, relativamente ao mal e seu oposto no meu mundo, é a de que existem deslocações fora de qualquer tipo de espaço. Essas deslocações, se quiser, pode considerá-las forças negativas e positivas. Mas coexistem indiferenciadamente e em simultâneo. Quando ocorre uma tentativa de as distinguir umas das outras, dá-se uma deslocação. Não quer dizer que a diferenciação aconteça, efectivamente. É mais qualquer coisa como uma distinção meramente hipotética, jamais chegando a ser concreta. O que é muito diverso do que se passa, certamente, aí no seu lugar.
Assim sendo, e atendendo às características dimensionais do seu universo, posso assegurar-lhe que, até certo ponto, a Sibila e seus companheiros humanos estão sujeitos a uma luta (ou conflito) que classificarei de "feroz". É por isso que admiro a Sibila e os humanos em geral. É por isso, também, que não quero perder esta comunicação consigo. A vossa existência produz, em mim, infinita admiração!
Dei a maior atenção ao seu anexo. O medo é compreensível, no vosso caso. É uma das vossas armas, para defesa de qualquer tipo de forças atacantes que vos perturbem. Defesa, no sentido de "estado de alerta". Pode ser importante, calculo. Claro que deve ter os seus contras... Mas onde os encontro é na violência que o medo poderá gerar. Não lhe parece que sendo uma tão forte e poderosa emoção, igualmente forte e poderosa deverá ser a capacidade de a controlar? Na verdade, julgo que será mesmo humano, sentir medo. Se eu pudesse existir no tempo, pedir-lhe-ia apenas um minuto do seu medo. E um minuto da sua capacidade para o controlar. Poderia, assim, saber em que consiste sobreviver...
Espero por novas informações suas.

P.S. - Envio-lhe, mais uma vez, uma possível "visão" do meu mundo.

mundo metafísico-sem tempo-Alibis

(imagem: Saturn and Earth ready for cosmic game of peekaboo)

2 comentários:

Anônimo disse...

É um texto soberbo, este... A análise que faz do medo está em total consonância com a interpretação que faço dessa mesma emoção.
O mal e o bem existem num mundo que está longe de ser monocromático. São resultado das complexidades mentais e ambientais...
O Universo descrito pelo Alibis fez-me de imediato pensar no mundo do infinitamente pequeno, em que as realidades físicas são bem mais estranhas que a ficção... Lembrei-me do "efeito de túnel", um fenómeno que ocorre quando uma partícula subatómica passa de um lado ao outro de uma barreira sem a atravessar...
Não me vou alongar no comentário; vou, isso sim, reler o post...

Cumprimentos

Anônimo disse...

gostei muito de ler, sibila. um texto revelador e até impressionante. uma carta que eu gostava de "receber"... beijinhos.