quinta-feira, 10 de maio de 2007

A culpa

"Sou um homem doente...Sou um homem mau. Um homem repulsivo, é isso que eu sou. Acho que tenho alguma coisa no fígado. De qualquer modo, não entendo que raio de doença é a minha, não sei ao certo o que me faz sofrer. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite a medicina e os doutores. Além do mais, é intolerável como sou supersticioso; enfim, o suficiente para respeitar a medicina. (Sou bastantemente instruído para não ser supersticioso, mas sou supersticioso.) Sim, é por maldade que eu não me trato. Aposto, meus senhores, que isso é uma coisa que não compreendeis. Mas eu, sim! (...)"

"(...) Vejam os senhores: a razão, meus caros, é uma coisa boa, isso é indiscutível, mas não é mais do que a razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem; o desejo, porém, é uma manifestação de toda a vida humana, inclusive da razão e de todas as coçadelas de meninges. E embora essa manifestação seja, na nossa vida, uma miséria, não deixa de ser sempre vida e não a extracção da raiz quadrada. É que eu, por exemplo, quero viver, muito naturalmente, para satisfazer toda a minha capacidade de vida, e não para apenas satisfazer a minha capacidade racional, ou seja, qualquer coisa como a vigésima parte da minha capacidade de viver. O que sabe a razão? A razão sabe apenas aquilo que teve tempo de aprender. (...)"

"Havia muito que sentira ter-lhe revirado a alma, ter-lhe ligeiramente quebrado o coração, e quanto mais me ia convencendo disso, tanto mais depressa e com mais força procurava atingir o meu objectivo. Era o jogo, o jogo que me arrastava... Não só o jogo, no entanto...
(...)
-Lisa, minha amiga, a culpa foi minha...desculpa-me - comecei, mas os seus dedos apertaram-me as mãos com tanta força que eu percebi que estava a dizer asneiras e calei-me.
(...)
Ao anoitecer, saí para tomar ar. Doía-me a cabeça, andava-me à volta desde a véspera. No entanto, quanto mais a noite se aproximava e mais as trevas se espessavam, mais as minhas impressões se transformavam, se misturavam, e os meus pensamentos também. Sentia qualquer coisa que se recusava a morrer no fundo de mim, no fundo do meu coração, da minha consciência, que teimava em não morrer, que se traduzia numa angústia ardente. (...) Não conseguia controlar-me, pôr em ordem os pensamentos. Qualquer coisa subia, subia sem parar do fundo do coração, doía-me, recusava amainar. Entrei em casa completamente acabrunhado. Como se tivesse, sei lá, um crime na consciência."
Fiódor Dostoiévski, Cadernos do Subterrâneo

Um comentário:

n©n disse...

Obrigada Sibila,
pela tua participação no cadáver
;-)