domingo, 27 de maio de 2007

Mistério de Afrodite

Teresa Salgueiro e Caetano Veloso

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Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.

David Mourão-Ferreira

terça-feira, 22 de maio de 2007

sábado, 19 de maio de 2007

Poesia negra de Babel



-Vieste e a alma vestiu-se de negro
Foste e a alma roubada com o olhar
Cada palavra, uma flecha
Atirada p'ra matar
-Era uma vez o horror
Instalado ficou
Insidioso ali penetrou
A conta-gotas largado
-Por trás de arestas cortantes
Nas esquinas dos edifícios
Por onde passamos
Morou disfarçado
-O corpo também morre assim
Perde-se por entre os dedos
Entrega-se aos sacrifícios
Pois Caim traiu Abel
Mas eu não sou Caim
Nem Abel
Meu nome é tão só Raquel
E morro dentro de mim
-Moro em Torre de Babel
Não posso entender-te a ti
Não posso entender-me a mim
-Subindo tão altas escadas
Procuro as palavras certas
P'ra lá dos sons e das vozes
Acima dos grandes clamores
Só vejo coisas incertas
E morro dentro de mim
-Subo passos de gigantes
Fujo p'ra terras distantes
Atrás de mim este horror
Dentro de mim este amor
E morro dentro de mim
-Do horror se faz amor
Ele mora comigo em Babel
E fica nesta morada
Que pode julgar-se dourada
Mas isso é só no papel
-E este amor que em mim mora
Julga-se negro por fora
E nada disso é assim
De arco-íris as cores
Brilhante dentro de mim!

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Cartas V



Alibis: Hoje estou muito triste. Não sei se sabe o que é a tristeza... A vida por aqui ocupa-nos tanto! Não sobra tempo nenhum para lhe escrever. Hoje mesmo, terei que ser breve. No entanto, tinha tanto para lhe dizer. Fica, inevitavelmente, adiado por mais algum tempo.
Mas queria falar-lhe disto que sinto: a tristeza. Que se mistura com o horror. É verdade, muitas vezes se fundem. Poderá o Alibis entender os meus sentimentos? Poderá interessar-se por eles? Não faço a menor ideia... Em jeito de desespero, não tenho outro alguém com quem possa fazer esta catarse da alma.

Imagine um caminho imenso ao longo de um túnel. Por aí fora, eu vou andando... As paredes do túnel vão-se estreitando, vão-se apertando... e eu cada vez mais comprimida. Pode parecer uma questão espacial, mas não. É uma questão temporal. O tempo cada vez mais apertado, mais comprimido à minha frente. Ao fundo do túnel, não há uma luz, como é costume pensar-se, mas sim um rosto. Caminho na sua direcção. Os meus olhos crescem procurando definir os contornos desse rosto. Nunca consigo defini-lo. É como se fosse feito de uma matéria instável. Continuo a caminhar. A tristeza a oprimir os meus passos. Ao fundo, uma ideia que quanto mais procuro agarrar mais se dissolve. E o horror. A certeza aterradora de estar no túnel errado. Sem saída, porque as paredes não têm uma única janela. Nem ao menos um qualquer tubo de ventilação.

Asfixia. De repente, mesmo andando em frente, sempre, uma mão invisível aperta-se, à roda do meu pescoço. Tenho que caminhar com ela e com esta falta de ar a fazer parte de mim e do meu caminho. Esta mão de tremenda frieza crava-se na minha garganta. Páro e tento habituar-me... A mão está lá, os dedos apertam, e tento considerar esta mão como mais um orgão do meu corpo, do qual não me tinha apercebido antes. A mão aperta continuamente, com intensidade controlada. Não ultrapassa o limite para lá do qual eu morreria, mas não afrouxa o aperto de modo que eu possa libertar-me dela.

Além deste sufoco, a mão emana um ambiente que se entranha na minha mente. Um ambiente crispado, de uma crispação medonha e inexplicável. E sinto-me triste, porque uma mão deveria ser um afago, uma carícia, um contacto, um elo, uma ligação... e não esta crispação que fere todos os segundos a pele, a carne, e pior que tudo, a alma!

Sinceramente, acho que o túnel não tem fim, embora crie a ilusão de uma meta. Estamos condenados a seguir esta seta do tempo sempre na mesma direcção. Cada paragem forçada pelo esgotamento é uma morte. Na verdade não morremos. Continuamos o mesmo percurso, sem o sabermos, retomando por uma ponta qualquer, a angústia que a existência anterior deixou ficar ao longo do túnel.

(Imagem: Schane Clark, Grasp)

quinta-feira, 10 de maio de 2007

A culpa

"Sou um homem doente...Sou um homem mau. Um homem repulsivo, é isso que eu sou. Acho que tenho alguma coisa no fígado. De qualquer modo, não entendo que raio de doença é a minha, não sei ao certo o que me faz sofrer. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite a medicina e os doutores. Além do mais, é intolerável como sou supersticioso; enfim, o suficiente para respeitar a medicina. (Sou bastantemente instruído para não ser supersticioso, mas sou supersticioso.) Sim, é por maldade que eu não me trato. Aposto, meus senhores, que isso é uma coisa que não compreendeis. Mas eu, sim! (...)"

"(...) Vejam os senhores: a razão, meus caros, é uma coisa boa, isso é indiscutível, mas não é mais do que a razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem; o desejo, porém, é uma manifestação de toda a vida humana, inclusive da razão e de todas as coçadelas de meninges. E embora essa manifestação seja, na nossa vida, uma miséria, não deixa de ser sempre vida e não a extracção da raiz quadrada. É que eu, por exemplo, quero viver, muito naturalmente, para satisfazer toda a minha capacidade de vida, e não para apenas satisfazer a minha capacidade racional, ou seja, qualquer coisa como a vigésima parte da minha capacidade de viver. O que sabe a razão? A razão sabe apenas aquilo que teve tempo de aprender. (...)"

"Havia muito que sentira ter-lhe revirado a alma, ter-lhe ligeiramente quebrado o coração, e quanto mais me ia convencendo disso, tanto mais depressa e com mais força procurava atingir o meu objectivo. Era o jogo, o jogo que me arrastava... Não só o jogo, no entanto...
(...)
-Lisa, minha amiga, a culpa foi minha...desculpa-me - comecei, mas os seus dedos apertaram-me as mãos com tanta força que eu percebi que estava a dizer asneiras e calei-me.
(...)
Ao anoitecer, saí para tomar ar. Doía-me a cabeça, andava-me à volta desde a véspera. No entanto, quanto mais a noite se aproximava e mais as trevas se espessavam, mais as minhas impressões se transformavam, se misturavam, e os meus pensamentos também. Sentia qualquer coisa que se recusava a morrer no fundo de mim, no fundo do meu coração, da minha consciência, que teimava em não morrer, que se traduzia numa angústia ardente. (...) Não conseguia controlar-me, pôr em ordem os pensamentos. Qualquer coisa subia, subia sem parar do fundo do coração, doía-me, recusava amainar. Entrei em casa completamente acabrunhado. Como se tivesse, sei lá, um crime na consciência."
Fiódor Dostoiévski, Cadernos do Subterrâneo

domingo, 6 de maio de 2007

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Cartas IV



Sibila: descobri finalmente tudo aquilo de que preciso para comunicar consigo. Acho que daqui em diante será mais fácil trocarmos as nossas impressões acerca dos respectivos mundos, como lhes chama...
Há uma coisa que devo esclarecer: eu não morri nunca. Aliás, vou já dizer-lhe: se há aspecto desagradável, aqui por estas dimensões, é o facto de sermos "imortais". Quero dizer, aqui não temos tempo. Somos tudo o que somos sempre a cada instante, se bem que instante não é conceito nosso mas vosso.
Agora, repare na dificuldade que ambos teremos em nos compreender... Mas agarrei a tentativa e cá estou, de certo modo, consigo.
É difícil explicar mas a imortalidade é bastante enfadonha, sobretudo por estar tudo presente em cada instante. Não há nada para recordar nem nada para projectar. Se soubesse como a invejo!
Quanto às artérias...Estranho! Nelas circula o sangue... Mas isso deve constituir realmente situação bastante precária. Parece que a vossa vida depende sobremaneira desse sistema de "tubos" contorcidos no vosso interior.
Quanto a mim, saberá alguma vez de que "massa" sou feito? Bem queria encontrar as palavras certas (essas vossas preciosidades!) para lhe descrever o meu organismo, mas deparo-me com tremendas dificuldades. Ando à procura de uma outra forma de comunicação que possa, neste caso, ser mais eficaz do que as palavras. Será que tem alguma ideia acerca disso? Alguma sugestão que consiga fazer-me? Fico à espera, até porque ainda não descobri o modo de o fazer, embora saiba que a solução está comigo, pois, como lhe disse, temos e somos tudo o que temos e somos em cada instante. O que acontece muitas vezes é não estarmos conscientes da totalidade, pois como poderá supôr, é algo extremamente avassalador: estarmos repletos de tudo. E se existe algum sofrimento por aqui, consiste precisamente nisso.
Pergunta-me sobre o "mal". Se existe por aqui... Repare: está tudo misturado, o mal e o bem. Não fazemos distinções. Embora não tenha ainda a certeza de ter entendido o que quer dizer com estes termos, julgo não andar longe do seu significado temporal, por aí. O mal e o bem devem distinguir-se talvez em virtude do vosso universo submetido à causalidade. Logo, considerando consequências de certos actos (causas) e seus efeitos, o mal distinguir-se-á do bem e vice-versa.
Mas...por aqui, isolados da relação causa-efeito, tudo consiste num aglomerado de factos que, de certo modo, lutam para se diferenciarem. Pode dizer-se que essa é a força motriz de muito do que existe no meu universo. Da indiferenciação à diferenciação, jamais realidade. E creio que por aí, é precisamente o inverso o que sucede. A expressão mais próxima que posso utilizar, relativamente ao mal e seu oposto no meu mundo, é a de que existem deslocações fora de qualquer tipo de espaço. Essas deslocações, se quiser, pode considerá-las forças negativas e positivas. Mas coexistem indiferenciadamente e em simultâneo. Quando ocorre uma tentativa de as distinguir umas das outras, dá-se uma deslocação. Não quer dizer que a diferenciação aconteça, efectivamente. É mais qualquer coisa como uma distinção meramente hipotética, jamais chegando a ser concreta. O que é muito diverso do que se passa, certamente, aí no seu lugar.
Assim sendo, e atendendo às características dimensionais do seu universo, posso assegurar-lhe que, até certo ponto, a Sibila e seus companheiros humanos estão sujeitos a uma luta (ou conflito) que classificarei de "feroz". É por isso que admiro a Sibila e os humanos em geral. É por isso, também, que não quero perder esta comunicação consigo. A vossa existência produz, em mim, infinita admiração!
Dei a maior atenção ao seu anexo. O medo é compreensível, no vosso caso. É uma das vossas armas, para defesa de qualquer tipo de forças atacantes que vos perturbem. Defesa, no sentido de "estado de alerta". Pode ser importante, calculo. Claro que deve ter os seus contras... Mas onde os encontro é na violência que o medo poderá gerar. Não lhe parece que sendo uma tão forte e poderosa emoção, igualmente forte e poderosa deverá ser a capacidade de a controlar? Na verdade, julgo que será mesmo humano, sentir medo. Se eu pudesse existir no tempo, pedir-lhe-ia apenas um minuto do seu medo. E um minuto da sua capacidade para o controlar. Poderia, assim, saber em que consiste sobreviver...
Espero por novas informações suas.

P.S. - Envio-lhe, mais uma vez, uma possível "visão" do meu mundo.

mundo metafísico-sem tempo-Alibis

(imagem: Saturn and Earth ready for cosmic game of peekaboo)

quarta-feira, 2 de maio de 2007

O medo




«O medo é a mais antiga e mais poderosa das emoções humanas, e o tipo de medo mais antigo e mais poderoso é o medo do desconhecido. Poucos psicólogos questionarão estes factos, e a aceitação desta verdade deve fixar para sempre a genuinidade e o valor do conto fantástico de horror como forma literária. Contra ele são arremessados os dardos fulminantes de uma sofisticação materialista, ancorada em emoções corriqueiras e em eventos externos, e de um idealismo ingénuo e insípido, que deprecia o motivo estético e apela a uma literatura didáctica que "eleve" o leitor até um grau conveniente de optimismo balofo. (...)

O apelo do macabro espectral é normalmente limitado porque requer do leitor um certo grau de imaginação e uma capacidade de alheamento da vida quotidiana. São relativamente poucos os que estão suficientemente livres do feitiço da rotina diária para poder responder aos subtis chamamentos do exterior. (...)

Mas as mentes sensíveis estão sempre connosco, e por vezes um curioso lampejo de imaginação invade um recanto obscuro na mais metódica cabeça; de tal modo que não há quantidade de racionalização, reforma ou análise freudiana que possa anular o estremecimento provocado por um sussurro no canto da chaminé ou por um bosque solitário. (...)

Este tipo de literatura-do-medo não pode ser confundido com um outro tipo aparentemente similar mas psicologicamente bastante diferente: a literatura do medo meramente físico e do macabro vulgar. (...) O verdadeiro conto de horror sobrenatural contém algo mais do que assassinatos secretos, corpos ensanguentados ou formas envoltas em lençóis brancos arrastando correntes, como mandam as regras.

Por volta de 1830 rompeu uma aurora literária que afectou directamente não só a história do conto fantástico mas a história da ficção curta como um todo, moldando indirectamente as tendências e destinos de uma grande escola estética europeia. Enquanto americanos somos afortunados por poder reclamar para nós esse amanhecer, pois surgiu na pessoa do nosso mais ilustre e desafortunado compatriota, Edgar Allan Poe. A fama de Poe tem sofrido curiosas ondulações, e agora é moda entre a "intelligentsia vanguardista" minimizar a sua importância quer como artista quer como influência; mas seria difícil a qualquer crítico de espírito maduro e meditativo negar o tremendo valor do seu trabalho e a potente persuasão da sua mente enquanto desbravadora de perspectivas artísticas.»
H.P. Lovecraft, O terror sobrenatural na literatura

(imagem: H.P. Lovecraft)

L'Amor - Arianna Savall


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